Jair Eloi de Souza (*)
O
brilho da noiva da noite estava ofuscado. Chuvisco coado, tocando seco
na pele, mais para o cênico de uma névoa em retirada, pois os ventos de
travessia alongavam sua forma. No entanto, era o único refúgio para os
que caminhavam na direção da choça campônia. Havia muita escuridão,
caminhos cheios de gravetos, galhos tortuosos, coisas que produziam
passos trôpegos e tateantes com breves espaços de um andar firme. O
silêncio era sinistro e ao mesmo tempo amistoso, circunstância que podia
garantir um vago sucesso daquela que seria, talvez, a última convenção
dos que habitam os descampados do tempo. A jaguatirica fora a primeira a
chegar, viagem longa, embaraçada, tivera que romper o cipoal da
caatinga fechada o tempo todo. Sua comunidade tem poucos exemplares,
possui pele aveludada, cor ruivo-amarelada, com manchas redondas orladas
de preto. Sua alma habita os salões nobres sob a forma de pele, por
isso não lhe dão sossego. Arredia e à espreita de qualquer imprevisto,
indaga do chefe de cerimônia, um velho papagaio de penugem gasta, sobre o
evento, de quem recebe informação que quase todos estão chegando à
tenda, com exceção dos cervos, pois, na última lua do mês das cobras, um
membro da comunidade havia sido trucidado nas campinas da Chã da Graúna
e contaminara a espécie de banzo e melancolia. Obviamente, não se podia
falar mais na presença da grande pernalta, a majestosa Garça Parda.
Esta não mais habita as lagoas do sertão. Mudara-se para os alagadiços
das terras maranhenses. Os patos de crista, majestosos, eram assunto de
conversa de nossos ancestrais, dizendo de sua beleza quando
desapareceram.
A
hora avança, os personagens convidados convergem para a chegança com
misto de langor e esperança. Num estalar de olhos, a conferência está
repleta. Muitos já não se conheciam. Personagens dos mais longínquos
rincões, como o jacu, de andar sutil, silencioso, antigo habitante dos
juremás, conhecido como o “peru da caatinga”. A sururina, com seu canto
triste que se fez personagem na composição “Luar do Sertão”, em verve de
Catulo da Paixão Cearense. A Asa Branca, vinda de longe, habita em suas
horas de reserva num sovaco de serra lá pras bandas do Seridó, não faz
mais a sinfonia vesperal com seus arrulhos no velho angico, quando da
cata de resíduos de milho do inverno passado. Vida reclusa, para quem já
foi a fênix da resistência e do apego ao Sertão, no canto melodioso do
velho Gonzaga, também se fazia presente. Os Desdentados: o vegetariano
tatu-galinha, o peba glutão e anárquico, capitaneados pelo lerdo e
paciente degustador de cupins, o velho Tamanduá-Bandeira, acabavam de
chegar. A Acauã, com seu caráter agourento e precavido, atrasara-se
pretensiosamente. É hora de trabalho, a oração inicial aos deuses dos
descampados do tempo, o olhar firme de cada espécie, elegem o tema: “O
sonho de viver nas mesmas terras que viveram os seus antepassados”.
Para
o fim, a discussão começara pela súplica por espaço em mata. Isso
traria a comida, o direito de viver e de reproduzir. O chefe do
cerimonial, louro falante, tinha lá suas queixas iniciais: era costume
anual, fazia com sua companheira a postura em velho cupim na grota da
Serra do Cuité, no sítio São Francisco. Viagem longa, vinha das matas de
Pernambuco, nunca conseguira levar seus filhotes para seu habitat
natural. Véspera da volta, um velho, de nome Zé Agostinho, tirava os
filhotes encanhãozados. O denunciante e companheira passavam três dias
em redor do ninho, com tristeza, contemplando o vazio, e lá se iam de
volta, em companhia da intensa melancolia pela perda dos seus. Em
sequência, a rolinha branca dissera: minhas primas-irmãs, as versões
cascavéis e roxa (caldo de feijão – no sertão) são fugitivas da pólvora,
estão confinadas às ilhas ribeirinhas e grandes mangas, nos latifúndios
do baixo Piranhas-Açu, e às matas do baixo Jaguaribe. Não as vejo faz
tempo. Por fim, ainda, das pombas columbinas, falou o juriti: Sei que
sou exigente, faço meu ninho entre os espinhos na forquilha do
mandacaru, no caatingote fechado, onde externo os meus arrulhos, que
sempre são alongados e tristonhos, para disfarçar o lugar em que me
encontro. Não tenho a liberdade em canto na campina aberta.
Exaurindo
o espaço aberto à discussão, falou um velho canção, morador das empenas
da Serra do Cavalcante, no Município de Caicó, matador de cascavel de
onze enrugas e sempre de forma festiva, que disse: “moro na caatinga
estorricada,quase não tenho água, vivo da missão inglória de matar
serpente, é meu alimento, e, no limite onde termina a vida e começa a
morte, também sou caçado, os gaioleiros me perseguem; não me querem
morto, só lhes sirvo vivo; portanto, está em jogo a minha liberdade. Mas
ouço falar que, no templário da justiça dos homens da lei, tem um chefe
ministerial que toma arma de atrevidos e, quando avisado, protege a
natureza e a nós; sugiro que tenha aviso de toda nossa situação, quem
sabe pode nos atender”.
A
névoa mesmo em plena era dezembrina, teimava em cobrir a mata, parecia
um capricho dos deuses, que, mesmo em bocejos ante a alongada
conferência dos que habitam o seio da mãe natureza, estavam vigilantes
com os que sonham, mesmo que esse sonho seja apenas um sonho em névoa,
com ventos de travessia.
Chã da Graúna, em lua nova dezembrina/2008.
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