ENTERRE MEU CORAÇÃO, NA CURVA DO TEMPO...
...EU SOU O RIO PIRANHAS, ESTE É MEU ÚLTIMO ACENO.
Jair Eloi de Souza.
Nasci da tempestade. Era noite chuvosa. A luz que indicou meu curso foi
mais que de repente. Relâmpago madrugadenho, anunciado pelas trombetas
do velho trovão. Na grota sutil da Serra do Bongá o meu embrião
lacrimal. Na descente o abraço do Rio do Peixe e Piancó, em Bonito de
Santa Fé, fez-se a lâmina encorpada. Velejei por várzeas e mais várzeas,
e beijei as terras potiguares, santuário de Padre João Maria, púlpito
de Amaro Cavalcanti e as bênçãos de Nossa Senhora dos Aflitos, com a
nomínica de Rio Piranhas. Ao nascer minhas fraldas eram verdejantes.
Meus lençóis em limbo e ilhas ribeirinhas me aqueciam numa proteção
maternal, para não perder a silhueta do corpo, o norte dos meus passos e
a pureza cristalina de minhas águas, que eram abundantes.
Tive
viço, fogosidade, muitas vezes me embriaguei ao enamorar a quadra
chuvosa, que de tanto me querer, esboroava seu choro em demasia, lavando
minha alma ribeirinha e minhas cercanias de baixios e taboleiros. Fui
estação de cio e reprodução da fauna aquática: Vi o namoro da famosa
garça parda, a majestade do pato de crista, as tropelias das emas em
eras de monta, o andar sutil do Jacu. A canção em arrulhos da Asa
Branca, A sinfonia duetada das casacas de couro, O canto compassado do
carão ribeirinho caqueando o aruá. Eu era a vida, um santuário onde se
colhia o mel de jandaíra, onde as pombas colombinas faziam se habitat
nas arejadas sombras das oiticicas duocentenárias.
Matei a sede da
gente ribeirinha e dos povos do Seridó, assim como o poço de Jacó também
saciou a sede do povo de Deus. Fui coito em samambaia verde-petróleo,
furnas gelatinosas de cangatís, piaus lavrados, curimatãs, cascudos,
traíras, piranhas e até de pirarucus. Fiz o saudoso passeio das moiçolas
de batom, penteadas a rigor, nas canoas no meu leito. As serenatas em
ponteio de violão, a estação do cupido entoando velhas canções.
Fiz
a ceia lauta dos que em tempos não tão distantes, não tinham opção para
saciar sua fome, bastava lançar a rede, a tarrafa. O cardume do meu
leito, era o menu, o pirão saboroso, para alimentar dezenas de infantes e
velhinhos, que tinham como última cidadela alimentar, este velho
Piranhas, hoje, na estação de lamento outonal.
Hoje enfermo. Eu,
que banhei a geração dos emergentes, dos que ostentam o cênico da
riqueza. Lavei tantas vezes seus artefatos, água cristalina. Hoje, me
devolvem o líquido da morte nas caladas da noite. Não tenho mais limbo
em samambaias verde-oliva, não ouço mais o sussurro dos cardumes em
boquejo nos meus lagamares. Sou um ancião com a morte anunciada. Mas,
faço o meu apelo último. Espero, encontrar pelo menos um, dentre aqueles
que banhei quando infantes, que sonharam com um País do futuro, que me
estenda a mão, Não tenho idade para ouvir o canto cisne. Comigo morrerão
centenas de vidas inocentes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário