domingo, 20 de outubro de 2013

Estamos todos virando black blocs

“Se não saímos mascarados nas ruas, ficamos escondidos em casa, atrás de pseudônimos, a usar nossos teclados para agredir as pessoas. Postando na rede os nossos coquetéis molotov. Quebrando dali as nossas vidraças”
Sou jornalista, não apenas por formação profissional, mas por espírito. Muito, muito antes de sair da faculdade com o diploma debaixo do braço, eu já era jornalista. Pela curiosidade incontrolável. Pelo cacoete de sempre tentar me distanciar das pessoas e das coisas por um tempo para poder vê-las e compreendê-las melhor. Pelo esforço imenso que sempre fiz para não ter preconceitos. Pelo gosto, pelo bom debate inteligente. E, é claro, pela defesa incondicional da liberdade de expressão, guardados os excessos, para os quais o caminho correto sempre será a Justiça.
Assim, é evidente que discordo profundamente, frontalmente, totalmente, dos posicionamentos dos artistas do grupo Procure Saber quanto à questão das biografias não autorizadas. Como muita gente, também tenho me espantado muito ao ver sair da boca desses artistas argumentos que eu realmente não esperava deles.
Agora, não será por isso que eu vou deixar de ouvir e de admirar o trabalho de gente como Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Não será por isso que vou renegar a importância profunda que eles tiveram para a minha formação cultural.
Que sem os versos de Chico Buarque, eu não teria chegado aos versos de Vinicius de Moraes. E daí aos de Drummond, Manoel Bandeira… Que sem Milton, eu não teria ido às Geraes. E das Geraes chegado a Guimarães Rosa. Sem a descoberta do tropicalismo de Caetano e Gil, talvez eu não fosse chegar aos modernistas, a Oswald de Andrade, a Mario de Andrade, ao seu Macunaíma. Talvez não fosse apresentado a Glauber Rocha. Certamente em vários momentos das suas vidas, todos esses citados – e muitos outros artistas que admiro – fizeram e disseram coisas que eu não faria e das quais discordo frontalmente. O que não me faz deixar de admirá-los.
E aqui chego ao ponto: até quando vai durar essa maldita era da desqualificação absoluta daqueles de quem discordamos? Eu li gente no Facebook citando a frase de Caetano Veloso em Sampa (“Narciso acha feio o que não é espelho”) para criticá-lo pela posição contra as biografias não autorizadas. E emendando em seguida que Caetano virou um chato que só fala besteira (“Narciso acha feio o que não é espelho”).
O ser humano nunca teve como hoje tanto espaço para debater e expor suas ideias. E nunca foi tão raso e preconceituoso ao fazer isso. Eis o paradoxo do nosso tempo. Quem quer que elogie o governo e o PT vira automaticamente de esquerda e progressista. Quem quer que critique o governo e o PT pelo que for é de direita e reacionário. As mesmas frases podem ser ditas em sentido inverso, trocando o PT pelo PSDB.
Dependendo do time político para os quais torçam, tudo o que façam ou digam torna-se automaticamente perdoado por suas respectivas torcidas. E motivo de ataque para a torcida adversária. Em vez de debates, trocas de insultos. Imensas pedradas virtuais. Cada computador, uma trincheira.
No fundo, não espanta que as ruas andem infestadas de malucos insanos, quebrando vidraças, tocando fogo em automóveis, jogando coquetéis molotov em prédios públicos e monumentos. No fim, os black blocs talvez sejam apenas a manifestação física daquilo que há tempos já vínhamos nos acostumando a fazer no mundo virtual. Quantas vezes eu li aqui mesmo nos comentários feitos neste Congresso em Foco leitores pregando que “tem que quebrar tudo”, “tem que jogar uma bomba no Congresso” e outras coisas do gênero?
Viramos isso. Essa horda. Se não saímos mascarados nas ruas, ficamos escondidos em casa, atrás de pseudônimos, a usar nossos teclados para agredir as pessoas. Postando na rede os nossos coquetéis molotov. Quebrando dali as nossas vidraças.
E ajudando a reproduzir um tempo em que as nuances, os detalhes, são esquecidos na ânsia da simplificação apressada. Tudo é branco ou preto. Vermelho ou azul. Progressista ou reacionário. Um mundo ao qual reagimos apertando ou não um botão. “Curtindo” ou não “curtindo”.
Eu não quero cair nessa. Discordo inteiramente deles na questão das biografias. Mas Chico, Milton, Caetano e Gil continuarão sempre tocando no CD do meu carro. E me emocionando do mesmo jeito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário